A Recuperação Judicial (RJ) no agronegócio de Mato Grosso do Sul disparou nos dois primeiros trimestres deste ano e já supera todos os registros anteriores para o mesmo período. Dados exclusivos enviados pela Serasa Experian ao Correio do Estado mostram que, entre janeiro e junho, foram protocolados 77 pedidos de RJ no setor, quase 55% a mais do que os 50 registrados no mesmo período do ano passado.
O volume representa um salto expressivo em relação aos anos anteriores e confirma o avanço acelerado da ferramenta jurídica como alternativa para produtores e empresas diante da crise financeira.
O movimento acompanha a tendência nacional apontada pelo Indicador de Recuperação Judicial Agro da Serasa Experian, que identificou alta de 31,7% nos pedidos no segundo trimestre de 2025, em comparação ao mesmo período de 2024. Foram 565 solicitações em todo o País, contra 429 no mesmo recorte do ano passado.
Dados da Datatech apontam ainda que, do total de 77 pedidos de RJ acumulados até junho em Mato Grosso do Sul, 34 (ou 44% do total) foram feitos por produtores que atuam como pessoa jurídica (PJ), 32 por pessoas físicas (PF) e 11 por empresas ligadas ao agronegócio.
O histórico revela que a escalada começou tímida em 2021, quando foram apenas cinco solicitações de Recuperação Judicial no agro sul-mato-grossense. Em 2022, o número chegou a 9 pedidos nos dois primeiros trimestres.
A curva começou a mudar em 2023, com 12 pedidos de RJ, e disparou em 2024, quando o total saltou para 50 solicitações. Neste ano, o número saltou ainda mais e já são 77 pedidos de Recuperação Judicial registrados no mesmo período.
O comparativo por trimestre também mostra aceleração: em 2021, o segundo trimestre teve apenas dois pedidos, contra 52 em 2025. No primeiro trimestre deste ano, foram 25 solicitações, o maior número da série histórica para o período.
Especialistas apontam que o avanço da Recuperação Judicial no agro está diretamente ligado ao endividamento crescente dos produtores, à volatilidade de preços das commodities e ao peso do crédito rural.
Para o advogado Rafael Arruda, especialista em agronegócio, o instrumento jurídico tornou-se uma saída cada vez mais comum diante das dificuldades financeiras.
“Hoje um produtor que está diante de uma situação de endividamento, ele tem algumas ferramentas à disposição como saída para a resolução desse problema. Então, a prorrogação de dívidas do crédito rural é uma das ferramentas e a Recuperação Judicial é outra. Há que se verificar caso a caso qual a melhor ferramenta de acordo com a situação do produtor”, explica.
PERFIL
No Brasil, os dados da Serasa Experian mostram que a categoria pessoa jurídica concentrou 243 pedidos de Recuperação Judicial no agro no segundo trimestre de 2025, número bem acima dos 121 do mesmo período de 2024.
O destaque ficou para os produtores de soja, responsáveis por 192 solicitações, seguidos pela pecuária bovina, com 26 pedidos.
“A surpresa foi o fato de produtores que atuam como PJ, terem uma quantidade superior de RJs do que produtores que atuam como PF. É a primeira vez que isso acontece desde o último trimestre de 2023, quando as RJs de produtores pessoas físicas experimentaram um rápido crescimento. Ainda estamos avaliando se houve um represamento de pedidos ou alguma mudança no perfil”, explica o head de Agronegócio da Serasa Experian, Marcelo Pimenta.
Entre os pedidos de pessoas físicas em nível nacional, foram 220 solicitações de Recuperação Judicial no segundo trimestre deste ano, contra 214 no mesmo período de 2024. Já as empresas ligadas ao agro protocolaram 102 pedidos, volume recorde da série recente.
Arruda destaca que a Recuperação Judicial tem caráter mais drástico, mas pode ser determinante para garantir a continuidade da atividade rural.
“A recuperação judicial é uma ferramenta mais drástica, mas em muitos casos ela é a que mais se encaixa à realidade do produtor. Ela preserva justamente o negócio do produtor rural, preserva empregos, enfim, preserva a economia girando também como um todo”, avalia.
Segundo ele, mudanças legislativas recentes ampliaram o acesso ao recurso. “Tivemos uma alteração legislativa um tempo atrás que passou a permitir que produtores rurais, mesmo em pessoa física, possam acessar a Recuperação Judicial. Hoje temos muitos produtores que migraram para a pessoa jurídica, abriram lá seu CNPJ, mas ainda a grande maioria dos produtores rurais operam como pessoa física e mesmo assim podem também acessar a RJ”, acrescenta.
Para o advogado Leandro Provenzano, integrante da Comissão de Direito do Agronegócio da Ordem dos Advogados do Brasil de Mato Grosso do Sul (OAB-MS), a crise é reflexo de uma soma de fatores econômicos, climáticos e estruturais.
“Houve quebras de safra importantes no Estado, mas o problema vai além disso. O produtor brasileiro tem custo elevado porque a maioria dos insumos é importada e cotada em dólar.Só a semente tem produção local, o restante [fertilizantes, defensivos, corretivos de solo]vem de fora, até da Ucrânia. Isso encarece a produção e reduz a competitividade”, explica.
Segundo Provenzano, a ausência de cobertura securitária para perdas agrícolas amplia o problema. “A maioria dos produtores está desprotegida. O seguro rural poderia minimizar os impactos das quebras de safra, mas é pouco acessível. Com a redução dos subsídios do governo federal, restou apenas a contratação via seguradoras privadas, o que encarece e afasta o produtor”, pontua.
Arruda reforça que, em situações menos críticas, a prorrogação da dívida continua uma ferramenta eficaz.
“Em casos não tão drásticos, eu diria assim, a prorrogação da dívida do crédito rural, ela se mostra como uma saída bastante efetiva e ela é uma saída barata, porque ela tem esse condão de manter as condições iniciais do contrato de empréstimo pactuado lá no início”, explica.
RISCOS
Ainda de acordo com a Serasa Experian, a escalada da Recuperação Judicial no agro poderia ser mitigada com maior uso de ferramentas de análise de risco, como o Agro Score.
O sistema consegue identificar fragilidade financeira dos produtores até três anos antes da solicitação da RJ, permitindo decisões mais seguras por parte dos credores.
“A adoção de análises aprofundadas na concessão de crédito contribui para evitar financiamentos a agentes em situação de fragilidade econômica, reduzindo a exposição ao risco e promovendo maior equilíbrio na saúde financeira do setor”, ressalta Pimenta.
O desempenho de Mato Grosso do Sul chama atenção porque, proporcionalmente, a variação no Estado é mais intensa do que a registrada no País.
Enquanto o Brasil viu uma alta de 31,7% nos pedidos no segundo trimestre deste ano, MS mais do que dobrou o número de solicitações em relação ao mesmo período do ano passado: foram 52 contra 36.
Na soma do primeiro semestre, o crescimento estadual é ainda mais expressivo, passando de 50 pedidos de RJ em 2024 para 77 neste ano, um avanço de 54%.
A expectativa é de que o ritmo de solicitações siga elevado no segundo semestre, pressionado por dificuldades de comercialização, custos de produção e endividamento acumulado.
Para Arruda, a recuperação judicial não deve ser vista como solução definitiva, mas como parte de uma estratégia de sobrevivência em um ambiente de instabilidade.“Eu diria que a RJ é uma saída um pouco mais drástica, mas ela traz muito bons resultados em algumas situações”, conclui.
Dados da Serasa Experian apontam ainda que, do total de 77 pedidos de RJ acumulados até junho em Mato Grosso do Sul, 34 pedidos (ou 44% do total) foram feitos por produtores que atuam como pessoa jurídica (PJ).